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tinham saído à luz, não somente para a fecunda- ção vegetal mas também para a beleza.
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Quaresma e seus empregados trabalhavam agora longe, faziam um roçado, e fora para auxiliar
esse serviço que contratou o Felizardo. Era este um camarada magro, alto, de longos braços, longas
pernas, como um símio. Tinha a face cor de cobre, a barba rala e, sob uma aparência de fraqueza
muscular, não havia ninguém mais valente que ele a roçar. Com isto era um tagarela incansável. De
manhã, quando chegava, aí pelas seis horas, já sabia todas as intriguinhas do município.
O roçado tinha por fim ganhar terreno ao mato, no lado do norte do sítio, que o capão
invadira. Obtido ele, o major plantaria obra de meio alqueire ou pouco mais de milho, e nos intervalos
batatas inglesas, cultura nova em que depositava grandes esperanças. Já se fizera a derrubada e o
aceiro estava aberto; Quaresma, porém, não lhe quisera atear fogo. Evi- tava assim calcinar o terreno,
eliminando dele os princípios voláteis ao fogo. Agora o seu trabalho era separar os paus mais grossos,
para aprovei- tar como lenha; os galhos miúdos e folhas, ele removia para longe, onde então queimaria
em coivaras pequenas.
Isso levava tempo, custava tombos ao seu corpo mal habituado aos cipós e tocos; mas
prometia dar um rendimento maior ao plantio.
Durante o trabalho, Felizardo ia contando as suas novidades para se distrair. Há quem cante,
ele falava e pouco se incomodava que lhe des- sem ou não atenção.
Essa gente anda acesa por aí, disse Felizardo logo que o major chegou.
Certas vezes Quaresma fazia-lhe perguntas, atendia-lhe a conversa, raras não. Anastácio era
silencioso e grave. Nada dizia: trabalhava e, de quando em quando, parava, considerava, numa postura
hierática de uma pintura mural tebana. O major perguntou ao Felizardo:
Que é que há, Felizardo?
O camarada descansou o grosso tronco de camará no monte, limpou o suor com os dedos e
respondeu com a sua fala branda e chiante:
Negócio de política... "Seu" Tenente Antonino quase briga ontem com "Seu dotô Campo".
Onde?
Na estação.
Por quê?
Negócio de partido. Pelo que ouvi: "Seu" Tenente Antonino é pelo "governadô" e "Seu dotô
Campo" é pelo "senadô"... Um "sarce- ro", patrão!
E você, por quem é?
Felizardo não respondeu logo. Apanhou a foice e acabou de cortar um galho que enleava o
tronco a remover. Anastácio estava de pé e consi- derou um instante a figura do companheiro palrador.
Respondeu afinal:
Eu! Sei lá... Urubu pelado não se mete no meio dos coroados. Isso é bom pro "sinhô".
Eu sou como você, Felizardo.
Quem me dera, meu "sinhô". Inda "trasantonte" ouvi "dizê" que o patrão é amigo do
"marechá".
Afastou-se com o pau; e, quando voltou Quaresma indagou assustado:
Quem disse?
Não sei, não "sinhô". Ouvi a modo de "dizê" lá na venda do espanhol, tanto assim que "dotô
Campo tá" inchado que nem sapo com a sua amizade.
Mas é falso, Felizardo. Eu não sou amigo coisa alguma... Conhe- ci-o... E nunca disse isso
aqui a ninguém... Qual amigo!
"Quá!" fez Felizardo com um riso largo e duro. O patrão "tá" é varrendo a testada.
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Apesar de todo o esforço de Quaresma, não houve meio de tirar daquela cabeça infantil a idéia
de que ele fosse amigo do Marechal Floriano. "Conheci-o no meu emprego" dizia o major;
Felizardo sorria grosso e por uma vez dizia: " 'Quá!' o patrão é fino que nem cobra".
Tal teimosia não deixou de impressionar Quaresma. Que queria dizer aquilo? Demais, as
palavras de Ricardo, as suas insinuações pela manhã... Ele tinha o trovador em conta de homem leal e
amigo fiel, incapaz de lhe estar armando laços para passar maus momentos; os entusiasmos dele,
entretanto, junto à vontade de ser bom amigo, podiam iludi-lo e fazê-lo instrumento de algum
perverso. Quaresma ficou um instante pensativo, deixando de remover os galhos cortados; em breve,
porém, esqueceu-se e a preocupação dissipou-se. À tarde, quando foi jantar, já nem mais se lem- brava
da conversa e a refeição correu natural, nem muito alegre, nem muito triste, mas sem sombra alguma
de cogitações por parte dele.
Dona Adelaide, sempre com a sua matinée creme e saia preta, sen- tava-se à cabeceira;
Quaresma à direita e à esquerda, Ricardo. Era a velha quem sempre puxava a língua do trovador.
Gostou muito do passeio, Senhor Ricardo?
Não havia meio dela dizer "seu". A sua educação de "senhora" de outros tempos, não lhe
permitia usar esse plebeísmo generalizado. Vira os pais, gente ainda fortemente portugueses, dizerem
"senhor" e continuava a dizer, sem fingimento, naturalmente.
Muito. Que lugar! Uma catadupa... Que maravilha! Aqui, na roça, é que se tem inspiração.
E ele tomava aquela atitude de arroubo: uma fisionomia de máscara de trágico grego e uma
voz cavernosa que rolava como uma trovoada abafada.
Tens composto muito, Ricardo? indagou Quaresma.
Hoje acabei uma modinha.
Como se chama? indagou Dona Adelaide.
"Os Lábios da Carola".
Bonito! Já fez a música?
Era ainda a irmã de Quaresma a perguntar, Ricardo levava agora o garfo à boca; deixou-o
suspenso entre os lábios e o prato e respondeu com toda a convicção:
A música, minha senhora, é a primeira coisa que faço.
Hás de no-la cantar logo.
Pois não, major.
Após o jantar, Quaresma e Coração dos Outros saíram a passear no sítio. Fora essa a única
concessão que ao amigo fizera Policarpo, no tocante ao regime de seus trabalhos agrícolas. Levava
sempre o pedaço de pão, que esfarelava em migalhas no galinheiro, para ver a atroz disputa entre as
aves. Acabando, ficava um instante a considerar aquelas vidas, cria- das, mantidas e protegidas para
sustento da sua. Sorria para os frangos, agarrava os pintinhos, ainda implumes, muito vivos e ávidos, e
demorava- se a apreciar a estupidez do peru, imponente, fazendo roda, a dar estouros presunçosos. Em
seguida ia ao chiqueiro; assistia Anastácio dar a ração, despejando-a nos cochos. O enorme cevado de
grandes orelhas pendentes levantava-se dificilmente, e solenemente vinha mergulhar a cabeça na cal-
deira; noutro compartimento os bacorinhos grunhiam e grunhindo vinham com a mãe chafurdar-se na
comida.
A avidez daqueles animais era deveras repugnante, mas os seus olhos tinham uma longa
doçura bem humana que os fazia simpáticos.
Ricardo apreciava pouco aquelas formas inferiores de vida, mas Qua- resma ficava minutos
esquecido a contemplá-las numa demorada interroga- ção muda. Sentavam-se a um tronco de árvore, e
Quaresma olhava o céu alto, enquanto Coração dos Outros contava qualquer história.
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A tarde ia adiantada. A terra já começava a amolecer, pelo fim daquele beijo ardente e
demorado do sol. Os bambus suspiravam; as cigar- ras ciciavam; as rolas gemiam amorosamente.
Ouvindo passos, o major voltou-se. Padrinho! Olga!
Mal se viram, abraçaram-se, e quando se separaram ficaram ainda a olhar um para o outro,
com as mãos presas. E vieram aquelas estúpidas e tocantes frases dos encontros satisfeitos: Quando
chegaste? Não espera- va... É longe... Ricardo olhava embevecido com a ternura dos dois; Anas- tácio
tirara o chapéu e olhava a "sinhazinha", com o seu terno e vazio olhar de africano.
Passada a emoção, a moça se debruçou sobre o chiqueiro, depois passou a vista pelos quatro
pontos e Quaresma perguntou:
Quedê teu marido?
O doutor?... Está lá dentro.
O marido tinha resistido muito em acompanhá-la até ali. Não lhe parecia bem aquela
intimidade com um sujeito sem título, sem posição bri- lhante e sem fortuna. Ele não compreendia
como o seu sogro, apesar de tudo um homem rico, de outra esfera, tinha podido manter e estreitar rela-
ções com um pequeno empregado de uma repartição secundária, e até fazê- lo seu compadre! Que o
contrário se desse, era justo; mas como estava a coisa parecia que abalava toda a hierarquia da
sociedade nacional. Mas, em definitivo, quando Dona Adelaide o recebeu cheia de um imenso res-
peito, de uma particular consideração, ele ficou desarmado e todas as suas pequenas vaidades foram
tocadas e satisfeitas.
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